quinta-feira, 15 de maio de 2008

sleepwalking through the mekong

O Zoio era o gajo mais forte que conheci na escola. O Zoio caçava cobras nas poças de água com as luvas de guarda-redes do chinês (“para não escorregar”) no fim do campo de futebol da escola e dizia aos tipos do ano a seguir, em especial a um que cheirava a fritos e a pés mal lavados, que lhe dessem murros na barriga enquanto ele fazia músculo. O Zoio mexia as mamas uma de cada vez, tinha uma metralhadora debaixo da cama e uns óculos com umas luzes que só ele e o pai, que era ninja, tinham, no mundo inteiro. Uma vez, o pai, que era ninja, fez um shuriken usando apenas um pacote de iogurte e um bocado de pasta de fígado e disse assim ao Zoio: “vai ali àquela tábua a quatrocentos metros daqui e desenha um boneco com um olho e eu acerto-lhe com este shuriken no olho”. Dito e feito. Pelo menos era o que o Zoio contava na escola. Mas não sabia era ler. O Prego, que era professor de História, disse-lhe que ele devia mas era precisar de óculos. E o Zoio foi comprar óculos mas continuava a ler como o Paulo Pires faz teatro. O Prego chamava-se Prego porque tinha um buraquinho no cimo da cabeça onde parece mesmo que se se fizesse um bocadinho de força se metia lá um prego. Uma ranhura assim para o redondo. Como se fosse o buraquinho por onde Deus tinha vertido a inteligência e depois tinha-lhe faltado material para tapar tudo e ficar assim mais composto. Havia várias teorias. O Gustavo dizia que ele tinha caído numa aula e batido com a parte de cima da cabeça naquela quina da ceninha de madeira onde se mete o giz. Claro que o Gustavo jurava a pés juntos que estava nessa aula. Mas o Gustavo também jurava que na minha casa havia um espírito metido num quadro da Gulbenkian. “E na tua não há?”, perguntei eu. E ele, que sabia sempre o que responder, disse: “não há que eu já vi”. O Gustavo tinha um poder enorme de convencer as pessoas de coisas. E eu, um poder enorme de acreditar. Uma vez, contou-me que o meio irmão dele tinha sido operado à pila e tinha passado seis dias no hospital com a pila de fora. O amigo do Gustavo, o Ruca, que era careca aos 11 anos e chorava como uma fonte de baba e ranho quando dormia longe da mãe, tinha-o visto aos saltos a fazer de avião no corredor do ciclo. O Assunção dizia que tinha sido duma aposta em que o Prego dizia que conseguia reter uma panela de fondue de queijo com a cabeça. Nunca ninguém teve a certeza, mas eu encontrei-o, anos mais tarde, durante a Expo 98. Ele reconheceu-me. Disse-lhe “olá” e tive uma vontade enorme de lhe pedir desculpa por todas as aulas em que não estive com atenção. Hoje nada sei de História. E quando alguém diz qualquer coisa dos Descobrimentos, tento sempre safar-me com um “o que eles querem é cona” e toda a gente se ri e o assunto muda para se o Porto é ou não uma invenção dos media.
O Pinto era quase tão forte como o Zoio. Chutava bolas descalço. E quis bater no primeiro metaleiro lá da escola. O Chunga. A quem todos os metaleiros lá da escola, eu e um caixa de óculos do ano anterior que andava sempre com uma t-shirt dos Sepultura, queriam imitar. Mas o Pinto era um ano mais velho e por isso não conta.
Mas isto não foi sempre assim. Na minha outra escola havia o Luís Filipe. O Luís Filipe partiu o braço uma vez e quase que nem chorou. E até teve um esgar de sorriso quando, logo de seguida, o Ferro atirou uma laranja à barriga do Nuno Tiago que o fez cagar-se nas calças de fato de treino novas que os pais lhe tinham comprado no supermercado Europa pelos anos. Aquilo saiu-lhe por entre os elásticos das pernas e foram até aos ténis porque o Nuno Tiago era daqueles que metia as meias por cima das calças. Os supermercados Europa eram uma cadeia, segundo estava escrito nos sacos de plástico. Nunca ninguém viu outro supermercado Europa sem ser aquele. Podia ser uma cadeia só de um. Mas quem percebe isso dos números são os meus netos. Eles até andam na universidade e têm cinco a tudo. Nunca ninguém teve coragem de corrigir a minha avó e dizer-lhe que na universidade quem tem cincos é quem pertence às tunas, à associação de estudantes ou ao grupo de teatro. Muito menos lhe disse que tinha chumbado. Preferi dizer que tinha optado por tirar um ano para fazer melhorias. Ainda bem que morreu e não me viu a falhar por completo na vida. Era a única pessoa que me perguntava se eu tinha namorada e a quem eu dizia a verdade. “Não, 'vó. Elas querem os tipos que jogam bem futebol”. Nunca poderia dizer-lhe que tinha chumbado. Ainda me lembro do ar reprovador do meu avô quando viu que tinha tido dois a desenho, no secundário. Nunca tinha torcido para alguém ter um AVC até então. Percebi que não tinha tido efeito quando ele disse: “Está ali uma nota menos famosa”. Quando o teve, quinze anos mais tarde, senti-me mesmo culpado, verti uma lágrima no funeral e nunca mais desejei mais nada assim deste género a ninguém. A não ser cancro da mama para o Mexia.
Presumo que o supermercado Europa ainda exista. Era no supermercado Europa que os meus colegas roubavam pastilhas. Isto porque conheciam a filha do dono. O Alcides. Alcides é o nome do dono e não o nome da filha do dono. Embora se a filha do dono se chamasse Alcides ninguém acharia estranho. Tirando o bigode, parecia mesmo uma adolescente. Deixámos de ir comprar ao Europa quando se descobriu que os frangos andavam lá pelo chão. Eu nunca roubei nada. Apenas uma cassete. Uma vez. Numa HMV nos arredores de Manchester. Suei tanto que prometi para nunca mais. Ainda por cima era dos Helloween e foi por causa dela (da cassete) que me tornei do metal. Ainda hoje a tenho. E quando pego no walkman para ir correr para Monsanto, é essa cassete que levo. Na esperança que me roubem tudo. E o sentimento de culpa que me consome desde os dezasseis anos desapareça. E eu possa, enfim, ter a paz que mereço.
O Flávio foi o mais forte durante um dia. O dia em que bateu no Luís Filipe e o meteu a chorar como uma menina. Tudo porque o Flávio insistia que quem tinha inventado a alcunha de Nébi Bufa dos Colhões para o João Neves tinha sido ele. Que calçava o quarenta e quatro aos dez anos e atravessava a escola com três passos e um pé. O João neves meteu-me uma vez a escavar ao pé de uma árvore que, segundo ele, era igual à de um mapa de um tesouro que o pai dele tinha lá em casa. Nunca lhe perdoei. Ainda para mais porque, nesse dia, o Tó Zé estava constipado e fizeram uma daquelas bolas de alcatrão (terra e escarra calcada com a palma da mão) do tamanho do bócio da avó do Flávio. No ano seguinte, o João Neves saiu da escola. Sem dizer nada a ninguém. E apareceu um tipo que era quase igual a ele. Passou a ser o Nébi 2. Mas tinha um irmão, apenas calçava o quarenta e dois e nunca a coisa foi a mesma.
Quem também chorava como uma menina era o André Filipe. Que só batia em raparigas. Em especial numa que andava de galochas e era do ano anterior e a quem ele esperava à porta do refeitório para lhe enfiar um soco no estômago e fazê-la vomitar. Hoje acredito que esta miúda seja boa na cama. Mas este conseguia gajas. Tipo a Joana. Que encontrei no outro dia numa inauguração duma exposição qualquer duma daquelas fufas ressequidas pelo tabaco e pelo gin tónico e já não é assim muito boa. O corpo cresceu-lhe em volta da cara. Que se manteve do mesmo tamanho que na terceira classe. Parece a versão feminina do Edward Norton. Ela só gostou do André Filipe no intervalo de dez minutos entre 9:50 e as 10:00. Depois voltou a ser amiga da Neusa. A Neusa usava franja way before as franjas estarem na moda. A Neusa e a Joana eram amigas de um gajo que apareceu lá na escola uma vez de collants, botas e uma camisola de lã comprida com um cinto amarelo. Penso que se chamava João Filipe. E gostava de dizer o meu nome. Chamava-me muitas vezes por André. E queria ser meu amigo. É a única imagem que retenho da criatura. Isso e de ele correr como a Sininho em direcção à Fátima Nova (que comia bananas só assim de engolir, em oposição à Fátima Velha que era gorda, tinha asma e tinha uma doença que lhe faziam cair as unhas dos pés) porque o João Filipe (outro, não o do cinto; ou então sou eu que chamo João Filipe aos gajos de quem já não me lembro do nome) tinha fechado a porta no dedo do David (que se lia Daví, segundo o próprio), que parecia um dos Thundercats, e ficou pendurado só assim por um fio (o dedo do Daví, não o Daví). Quando o vimos a não chorar, ainda alguém disse: “se calhar ele ainda é mais forte que o Luís Filipe”. Mas quando a pontinha do dedo se soltou e caiu no ralo da casa de banho já ninguém achou mais isso. A não ser o Alves que andou com aquela coisa de servir o esparguete a tentar tirar de lá a pontinha do dedo. Depois soprou e disse: “está como novo”. Já não me lembro se o Daví alguma vez mais teve o dedo inteiro ou se passou a cortar só nove unhas.
Hoje, não sei nada de nenhum deles. Ainda procuro no Facebook pelos nomes que me recordo. Tudo que me resta são estas memórias. De casa. Da escola. Dos amigos que tive e de quem já não sei nada. De quando ainda acreditava que podia ser feliz. Se te revires nestes textos. Se te lembrares ou fores algum dos aqui referidos, envia-me um mail e vamos reviver esses tempos. O tempo antes de os sentimentos secarem em mim para sempre.

20 comentários:

Anónimo disse...

Keeps getting better and better.

Vou ter de votar neste blog para a cena da SuperBock.

1 abraço seu cabrao

Anónimo disse...

Andas a ficar lamechas como o Pinto da Costa. Cuidado.

Unknown disse...

Acho que se alguém tentar fazer um texto de tributo aos amigos que há muito desapareceram... têm de ler este post!
Já deves saber, lógico, mas escreves muito bem.
Parabéns.

Peace!

Anónimo disse...

Eu lá queria fazer parte de uma turminha macabra e porcalhona como essa !?
Comparado com o teu staff da escolinha, os meus coleguinhas mais esquisitos são uns santos!

Bem, mais uma vez, um texto e pêras !!!

(Boa sorte com os reencontros)

Anónimo disse...

Tenho uma vaga ideia onde podes encontrar esses gajos que te acompanharam ao longo da tua escola. Lança no google as seguintes palavras chave: "zombie", "freak show", "circo", "mulher das barbas". Ou então tenta no conselho de ministros ou na assembleia da républica...

Anónimo disse...

O Dalai diria que a vida tem caminhos que nos escolhem e que não se pode pecorrer os caminhos dos outros. Se não o Dalai, pelo menos a Maya.

O digo : ganda lamechice!

O Man

Anónimo disse...

Havia um Supermercado EUROPA na Cruz de Pau, dentro do Centro Comercial Belsul.

Anónimo disse...

É só para dizer que aqui onde moro há 2 supermercados Europa.
Escuso dizer que às vezes encontram-se por lá iogurtes fora de prazo e o ambiente é meio bafiento, mas encontram-se lá bons chocolates (adoro comer chocolates fora de prazo).

Anónimo disse...

ó, porra, "walkman"...??? essa foi à pressão

epá o chunga... meteu-se em cenas estranhas - mas não é para admirar.

desde aquela vez em que o gajo gamou o blusão chevignon do ricaço indiano enquanto jogava à bola (não o chunga, ma so indiano) que se via que aquilo ia acabar no casal ventoso.

Nojento disse...

Ò Juvenal...

Ao ler isto começo a achar que as personagens que enumeras são assim muito deviantes...
O que me leva a pensar que numa sociedade organizada como a nossa nunca seriam deixados assim ao acaso...
Acho que teriam de ser todos juntinhos no mesmo asilo... ou cave, ou seja lá o que fôr...

Conta-nos lá... Vá...
Onde vos puseram durante esses anos todos?

Anónimo disse...

Há um supermercado Europa na Pontinha...com mobília original de há 15 anos ou mais!

Anónimo disse...

Há um supermercado Europa no Lumiar: no segundo piso podiam lá filmar um espisódio do Twilight Zone!


Jack the Nipple

juvenal, o anormal disse...

AHAH. esse é o verdadeiro europa. o do lumiar. mais que digno do twilight zone. e a rampa que ia ter aos lacticínios?

tiagugrilu disse...

Tenho mesmo que ir ao Lumiar... Além do "semáforo", há um supermercado do twilight-zone... À tantas até lá trabalha um preto com o olho descaído.

Anónimo disse...

bahbahabahahhaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa 5 points

Azathoth disse...

Facebook? tenta o Hi5....

essa cena do dedo e da "coisa de servir o esparguete" fez-me lembrar que tenho fome....

zehtoh disse...

Simplesmente fantastico,e ste texto :)

Judas disse...

meu.. quando começas à cata das gajas com que andavas na escola, é sinal que estáas desesperado...

Anónimo disse...

É triste...
Mas é verdade...

“De quando ainda acreditava que podia ser feliz.”

Hoje é com nostalgia que todos nós ou pelo menos alguns recordam esses tempos efémeros, alguns porque os outros os que não recordam esses tempos são os mesmos que tornam esta vida um inferno, os da ASAE os da GNR, PSP, Brigada fiscal, DGCI, SIS, governos ministros, secretários de estado e todos os cargos mixarucas que dão aos seus detentores a sensação que são mais que os outros que são tão inteligentes que podem roubar á fartazana e no entanto não são mais que os Zoios os Gustavos mas mais ressequidos e muito mais estúpidos que eram e não têm sequer nostalgia porque julgam que os tempos de infância lhes correram mal, juram vingança e muitos deles conseguem-na.

Olha-se para Portugal e vê-se que eles triunfaram...

Os labregos...

É triste...
Mas é verdade...

El-Gee disse...

pa este texto esta espectacular