Quando um gajo é pequeno e se chama Carlos, não se safa de vir a ser Carlitos para a vida. Mesmo com 40 um tipo ainda é o Carlitos. Quando se tem dois amigos chamados Carlos é preciso arranjar outra solução. Como na selecção do Brasil, que os Ronaldos vão crescendo. Passam de Ronaldinho a Ronaldo e de Ronaldo a Ronaldão, sempre que aparece mais uma estrela chamada Ronaldo. Claro que o Universo não permite que haja mais de 3 Ronaldos a jogar bem futebol ao mesmo tempo. Quem resolveu o problema foi o Quim Zé. “E se a malta chamasse a um Carlitos e a outro Carlinhos?”. No início, ainda se geraram alguns enganos. “O Carlitos? Qual deles? O do Algarve ou o de Santo Amaro de Oeiras?”. “Se eu quisesse dizer o Carlinhos, teria dito o Carlinhos e não o Carlitos”. Depois a minha avó disse: “ele já tem quase 18, já não lhe deviam chamar Carlitos”. Mas a minha avó dizia mesmo muitas coisas. Desde “eu quero lá pretos a viver lá em casa” e onde estava o O em “small” e que “no meu tempo os gatos comiam espinhas e os cães ossos. Agora até há comida de lata. Se fosse eu que mandasse dava essa comida aos pobres que eles ao menos iam gostar”. Um pobre, por definição, não pode comer um peixinho fresco. Um bife muito menos. Só massas, farinha e coisas de lata, em especial se forem para cães e gatos. Era o que faltava os pobres comerem o mesmo que nós. Qualquer dia até os pretos andam de táxi. Como me dizia, na quarta-feira, o taxista mais fascista de sempre depois de eu ter dito “ah, isso dos preços dos táxis não pára de aumentar” e ele “ó amigo, eu em mil nove cinquenta e quatro fui prá Índia...”. Estava fodido. Seguiram-se quarenta e cinco minutos de propaganda fascista intercalada com frases “isto aqui é só macacos, macacas, ucranianos e 'barsucas'” e terminadas com um emocionado “punheta!”. Trinta punhetas depois, lá consegui esquivar-me e voltar ao meu T8 de solteiro em Telheiras. Estava vazio. O pequeno Josué tinha ido para casa da mãe. Que me vasculhou os lençóis de seda em busca de manchas “de ter ido ao cu à Cristiana”. Não me corre bem a vida. Em casa estou sozinho e no trabalho o Toninho tirou o ano para me irritar. Estou perto de o meter a pagar-me a psicóloga. Sem esforço, o rapaz destrói 2 sessões de terapia em menos de duas frases. Alguns clássicos continuam apontados na minha cabeça mas não poderei nunca reproduzi-los não vá ele descobrir e depois fazer queixinhas ao chefe e ficar com a minha promoção. Passa o dia a anotar números irrelevantes que sublinha muitas vezes com um lápis que tem uma caneta igual e que prende no bolso da camisa. Metem-no a fazer aquilo porque lhes sai mais barato que estrague papel e se julgue a fazer algo realmente importante do que meta as mãos incompetentes no que não sabe.
O Carlitos inventava super-heróis. Os super-heróis do Carlitos eram sempre os melhores. Tanto aperfeiçoou a cena que chegou ao “super cowboy” (o super cowboy estava para o Carlitos como o 'Sétimo selo' está para o Bergman – a propósito, Tiago, o 'Sétimo Selo' não é sobre os correios suecos) que, segundo ele (o Carlitos, não o super cowboy), acumulava todos os poderes de todos os super-heróis existentes incluindo mesmo todos os outros que o Carlitos tinha inventado nesse Verão. E mais, tinha uma pistola. Ainda lhe perguntei “meu, para que é que um tipo com todos os super poderes de todos os super-heróis de sempre ainda tem uma pistola e uma capa?”. Ele não sabia. Felizmente eu inventei o “homem fode todos” que lançava um raio pelos dedos que fodia todos os poderes de todos os super-heróis alguma vez existentes com uma pós-graduação especial em foder o super cowboy. E mais, como a invenção do “homem que fode todos” foi posterior à invenção do super cowboy, o Carlitos já não podia dizer que o super cowboy também tinha os poderes do “homem que fode todos”. Eventualmente, o Carlitos inventou o super super cowboy e que acumulava também os poderes do “homem que fode todos”. Eu estava prestes a inventar o “homem que fode todos e mais o super super cowboy e todos os outros que serão inventados no futuro” quando o Carlitos se cagou. Ninguém sabe se foi alguma coisa que comeu. A verdade é que até pensos higiénicos usou. Aquilo saía líquido, azul, em repuxo e incontrolável. Depois arranjou uma miúda e passou a ir a discotecas e nunca mais fomos amigos.
O Carlinhos tinha um primo do kung-fu. O primo do Carlinhos saltava para quartos andares sem grande esforço mas com muita concentração. Em 1982, chegou a estar três dias sem respirar quando levou “um biqueiro no pescoço (mais ou menos como o Banha que “se te vir outra vez a passar aqui sem cartão, levas um pontapé no pescoço”) e a veia (qualquer que ela seja e qualquer que seja o processo) embrulhou-se à volta do tubo que respira. Mas só aguentou “com muita concentração” como o Carlitos gostava de dizer. O que era concentração, o que fez durante esses três dias ou porque não foi logo ao hospital is still a total mystery. Seria irrelevante para a história. Eu acreditava. Acreditava sempre e em tudo. Acreditava quando o Careca me disse que tinha um jogo para o Spectrum que se chamava “Past, present and future” e que um gajo carregava num botão (que só o Spectrum dele é que tinha) e falava para o computador e o boneco fazia aquilo que um gajo lhe dizia. Hoje já não acredito em nada. Especialmente quando me dizem “gosto tanto de ti” e “vamos ser felizes para sempre” porque já sei que o que querem é o meu dinheiro e o meu cargo na Fundação.
N. era o tipo mais influenciável de sempre. N. conheceu o Carlinhos no Verão de 88. As histórias de ninjas do Carlinhos e as minhas invenções incontroláveis levaram-no a querer ser ninja também. Com alguma regularidade, perguntava-lhe: “vês alguma coisa naquela parede branca?”. Dizia-me que não. E eu respondia-lhe: “então é porque devem lá estar uns 10 ninjas”. As histórias de que o meu avô era ninja e que, um dia, enquanto guiava de janela aberta com um braço de fora, rachou um poste de luz ao meio e só deu por isso porque partiu o relógio, faziam-lhe todo o sentido. Os balofos tinham destas coisas. E se há coisa que a sociedade não suporta, são tipos balofos e gordas com namorados. Os sinais de ser homossexual estavam todos lá. Os posters da Sabrina, a espuma no cabelo, a total ausência de pêlos, a voz fininha e irritante, ainda não queimada pelo esperma.
N. saiu da Universidade dos Ninjas, que era do pai do Zoio que também era toureiro e que dizia que o pai além de toureiro era também ninja e que tinha uma metralhadora debaixo da cama e uns óculos de sol únicos no mundo com umas luzes em cima que piscavam. A sua utilidade nunca foi explicada. Os três anos que lá passou e a sua tese sobre “Porque é que os ninjas nos filmes devem fazer barulhos como 'tje tje tje' e não 'psh psh psh'” ainda é hoje um marco e lida em todos os meios em que haja ninjas. Que ninguém sabe quais são porque os ninjas são como os avançados do Benfica. Ninguém os vê até o árbitro inventar um penálti. A técnica do ariete, inventada pelo Gustavo, o do Rocky, para combater o “tje tje tje” de N. ainda é aceite em algumas escolas e provocou várias cisões no meio dos ninjas, mas está em vias de extinção. O que N. realmente gostava era das calças pretas justas mas os 40% de polyester faziam-lhe suar tanto os tomates que tinha de usar um penso, como o Carlitos quando esteve doente e se cagava em repuxo.
domingo, 28 de outubro de 2007
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
6 comentários:
David Sylvian, muito bom.
Para variar, o post está brilhante. :)
pachita
Curti da invençao do "homem que fode todos". Solução simples e eficaz. Mais eficaz é um murro no focinho do dono do boneco e a respectiva pergunta "se eu te dei um murro nos cornos e tu nem reages, porque é que p teu boneco havia de ser mais forte que o meu?" Toma-te.
Mais um blog que vou tratar de visitar no futuro. muito bom!
Abraço!
Convido-te a visitar http://blogpredilecto.blogspot.com
Foda-se grande blog.... quase me mijava a rir...
gosto muito da maneira como misturas tudo num ritmo que parece que escreves com a mesma efusão com que pensas...
isto faz algum sentido?
isso parece tão pergunta da minha psicóloga.:|
Enviar um comentário