A parte que gostava mais do verão era ir para a casa da minha avó na Parede. Podia-se jogar o basquete (“e quem sabia jogar o basquete era o teu avô” - dizia a minha outra avó que não tinha uma casa de férias na Parede. Infelizmente, o meu avô não pode jogar mais o basquete porque teve uma mancha na perna que depois alastrou para a minha avó e ia alastrando ao bairro inteiro se não tivessem vindo logo os bombeiros e dito “altiparóbaile”. Provavelmente curou-a com mercurocromo. Este meu avô usava mercurocromo em tudo. Diarreia, seborreia, queimaduras, mamilos assados. E usavam sempre artigos definidos antes de todas as palavras. Em termos de cafés, o meu avô gostava mesmo era “do Buondi”. A minha avó não dizia nada porque o meu avô a obrigava a beber o descafeinado por causa da tensão, do glaucoma e dos diabetes.) num cesto feito pelo Sr. Não-sei-quantos que tinha muito jeito com tábuas e ferros e isso e que veio abaixo e se desconjuntou todo quando tentámos afundar os três ao mesmo tempo e ainda arrancámos um bocado da parede e culpámos o Carlitos que ficou com cara de parvo e ainda veio a minha prima e meteu-lhe os dedos nos olhos e ele ainda ficou com mais cara de parvo e não disse nada mas aposto que esteve quase a mostrar os pintelhos e a dançar o hula-hula, o futebol (com o Carlitos, dos pintelhos, que ia sempre à baliza porque o tufo amortecia qualquer bola que lhe fosse aos colhões) onde quem caísse ficava lesionado até ao fim das férias porque a superfície era em cimento rugoso e um dos amigos do Carlitos ficou com um joelho e meia rótula para a eternidade, mais ou menos como a mão da Rainha Santa Isabel que se podia ver não sei onde ao pé não sei de quê onde o irmão do outro protegia as formigas e gostava muito de barcos e sabia as capitais de todos os países do mundo excepto de um, andava-se de bicicleta com paus de vassoura nas mãos para aviar qualquer um que se aproximasse, jogava-se o ping pong (e normalmente acabava tudo à estalada com cabos de raquetes partidos e “anda cá ó filho da puta que eu parto-te a fuça toda 'tás é com medo não é ó meu g'anda cabrão?”), jogava-se com umas bolas daquelas que têm água e que se leva para a praia e depois se joga a um jogo que é meter uma bolinha pequenina no meio e atirar bolas pesadas a ver quem fica mais próximo, com um tipo meio gordo que atirou uma bola para a casa ao lado e fingiu que não tinha feito nada mas a vizinha do segundo andar que gostava muito de asas de frango e pouco de rissóis de camarão e latas de atum e gostava de chamar filho da puta ao genro pelo telefone às duas da manhã viu e chibou-se e ele foi depois lá buscar e estava mesmo arrependido, tão arrependido que o convidámos a entrar e lhe demos um prato de sopa e uma sandes de marmelada que era feita na garagem e onde o meu irmão meteu um braço uma vez no caldeirão da marmelada quase como o Obélix, que tinha um amigo (o gordo da bola, não o Obélix) que tinha sido operado à cabeça e que dizia “se me bateres com um pau de vassoura aqui *apontava para a cicatriz* pode ser que fique já aqui” e ainda nos desafiava a fazê-lo e quando perguntávamos o que é que ele tinha ninguém sabia dizer e inventava-se um bocadinho “diz que o pai é maluco e aquilo pega-se e foi operado para tirar o bocado que o faz ficar maluco”, olhava-se para o dedo do nosso vizinho que tinha um ferro-velho e que tinha saltado no dia em que andava a encher cartuchos e que o tinha guardado em formol num frasquinho de pickles e a quem eu uma vez acertei com um daqueles coisos de uma bateria que escavacámos toda e andámos a jogar futebol com os pratos e os tambores e lá essas cenas todas e ia-lhe vazando um olho, brincava-se aos cobóis e cada pistola tinha perto de infinitos tiros antes de ser carregada, contruíam-se casas com caixotes para depois se rebentar ao pontapé e andar tudo à estalada e a enfiar farpas nos dedos das mãos e a dizer que a culpa era do Carlitos que acabava sempre por levar na cara.
O lanche era sempre uma carcaça com manteiga. Outra com marmelada e um copo de Cola Cao.
Fiz vários amigos. Quando conseguia evitar andar à pancada com eles por me terem ganho em qualquer coisa que eu estava convencido ser melhor que eles, ou seja, praticamente tudo. O Hugo era diferente. Desde o dia em que fomos à quinta que soube que o Hugo era diferente. O Hugo deixava-se perder porque era pobre e achava que era para isso que eles serviam.
A quinta ficava numa estrada que tinha um muro e que era preciso apitar para se saber se vinha lá alguém. Sempre achei que apitar ou não era irrelevante porque toda a gente se atirava para aquela curva a toda a esgalha que mesmo que viesse alguém não haveria nada a fazer e acabaríamos todos em cadeiras de rodas a beber suminho e sopa moída até ao fim da vida. Havia um telheiro com pedrinhas no chão que se metiam entre o dedo grande do pé e o outro ao lado e voltavam connosco para casa e um armazém que tinha cenas antigas e um míssil que uma vez o irmão de um amigo disparou a meio da minha festa de anos, onde só iam três pessoas convidadas por mim e quinze convidadas pelo meu irmão (era realmente impopular. O que me safava eram os amigos em comum, que não eram da escola) quando eu já morava no Lumiar e ia arrancando a cabeça à minha prima mongolóide. Felizmente, quando nos rimos todos, ela pensou que nos estávamos a rir de ela ser mongolóide e riu-se também.
Quem tomava conta da quinta era o “Sô Zé”. O Sô Zé tinha quinhentos e quatro anos mas parecia ter quinhentos e cinco. E umas galochas. Verdes. A feder a chulé. Anos mais tarde, depois de o Sô Zé morrer (nunca ninguém me disse que ele morreu nem sei onde está enterrado. Quiseram fazer como se ele não tivesse tido importância nenhuma na minha vida. Mas eu lembro-me, Sô Zé. Se está aí a ler, ou alguém a ler para si, pois sei que era analfabeto, fique a saber que eu lembro-me), encontrei as galochas na garagem da casa da Parede. Ainda as calcei. Era demasiado novo para ter nojo dos pés do Sô Zé. Segundo constava, eram os pés do Sô Zé que davam sabor ao vinho que se fazia na quinta. O travo único que nenhum enólogo conseguiu alguma vez identificar. O único vinho que não precisa de queijo a acompanhar. O Sô Zé tinha uns familiares que nunca ninguém sabia quem eram. E constava que um deles bebia e teve uma trombose. E mesmo depois da trombose continuou a beber assim pelo canto da boca. Teve nova trombose e depois já só bebia por uma palhinha. Na quinta havia pêssegos e tangerinas. E o Carlitos gostava de ir aos pardais com uma tábua com um elástico preso com pionés onde metia pedrinhas e tentava acertar nos pássaros (não os do Hitchcock – a minha cinefilia a vir ao de cima). Nunca acertou em pássaro algum mas encontrámos umas bisnagas. Uma delas era igual àquelas pistolas que os alemães usavam e que eram muito homossexuais (a pistola, não os alemães). Como só deitavam um esguicho de nada, passámos a tarde a atirar aos calções do Carlitos, assim perto dos tomates e a dizer “iihhh, mijou-se!”. Durante os dez anos em que fui à quinta, estas são todas as minhas memórias. Isto e o Hugo ter-se cagado antes de chegarmos a casa e ir a brincar com aquilo a fazer de plasticina enquanto íamos no carro. E ainda levou. Como da vez em que eu nos tranquei na casa de banho para fugirmos ao meu irmão que tinha estalinhos e depois culpei o Hugo que, por ser pobre, levou na cara e eu tive direito a rebuçados e a sobremesa reforçada.
Foram os remorsos que me levaram a tentar ser amigo do Hugo quando foi passar férias connosco à Parede no ano seguinte. O Hugo tinha 8 anos e já tinha um bigode maior que o da Fernanda Ribeiro. Andava com os pés para o lado e era bom a inventar argumentos para filmes de cobóis. O Hugo fazia recados para a mãe a troco de vinte e cinco tostões. Juntava dinheiro para comprar um relógio. Um Casio daqueles que tinham umas coisinhas que se dizia que era para funcionar a luz solar. A minha avó, comovida, comprou-lhe um relógio e eu parti-lho com um martelo porque detestava este tipo de bondade gerada por pena. Queres um relógio, trabalha. Agora não me lixes a herança. Isto é inventado. A minha avó comprou-lhe mesmo um relógio num gesto muito bonito e nesse dia até o deixámos comer à mesa connosco e não na cozinha, com a criadagem.
O Hugo era um teórico das brincadeiras. Quando brincávamos aos cobóis com o Hugo era obrigatório carregar ao fim de seis tiros. Ele contava-os e ia anotando com o lápis que trazia atrás da orelha na agenda que tinha sempre com ele. Era do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa. E era de três anos atrás. Constava que o pai do Hugo guiava um táxi e tinha feito amigos na banca. Que lhe davam agendas e uma pancadinha no ombro perto do Natal. “Você é um bom homem, Artur, não se perca. Tome lá uma agenda para o seu”. O Hugo gostava do Chaplin. Mas chamava-lhe Charlot. De táxis. De bigodes. Do lápis atrás da orelha. Tinha orgulho na taberna da mãe. O cheiro a cerveja e a pataniscas de bacalhau enchiam-no de orgulho. No futebol, gostava era de centrar, porque tinha o pé chato. Ainda lhe disse que era “um gajo fixe”. Num dos raros momentos em que o meu coração cheio de maldade e negrume amoleceu e quase fui humano. Ele sabia que o fosso social que nos separava nos impediria de continuarmos amigos depois das férias. O seu coração retraiu-se e endureceu como as mãos de um agricultor ao fim de uma vida a trabalhar a terra. Ainda nos convidou para uma festa de anos. Onde havia um miúdo dois anos mais novo que me vinha perguntar “quantos anos tens?” e eu dizia “doze” e ele “eu tenho dez mas não tenho medo de ti”. Não joguei à bola com o Hugo e os amigos. Evitei usar talheres porque acreditava estarem besuntos de gordura e pobreza. Felizmente, os pratos eram de papel e pude rasgá-los no fim de cada uso. Fomos elogiados por sermos muito sossegados. Não era sossego. Apenas preferíamos observar o povo que laaaavaaas no rioooooo e talhas com o teuuu machaaaado as táaabuas do meu caiiixãaao.
Hoje o Hugo deve ser um homem feito. Deve ter um emprego honesto. Deve ter uma mulher e um filho que também se chama Hugo. São orgulhosos dos seus bigodes, do seu cheiro a cerveja e das nódoas de patanisca que lhes populam as camisas.
quinta-feira, 24 de abril de 2008
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16 comentários:
bom post.
lobo antunes começa a estar ultrapassado.
mas cuidado que andas a expor-te demais à nostalgia.
qualquer dia começas a contar daquela vez que foste pela primeira vez ao photus.
épico.
gostei mais do outro post que apagaste porque "tava fraquinho"
Ena, cola cau...
Quanto a referências de posts apagados posteriormente, deixa só dizer que tentar escrever depois de vir dos copos dá mau resultado. Um gajo na altura é que pensa que não... E no dia seguinte, depois de tomar o pequeno almoço às 5 da tarde, apaga logo...
"Sempre achei que apitar ou não era irrelevante porque toda a gente se atirava para aquela curva a toda a esgalha que mesmo que viesse alguém não haveria nada a fazer e acabaríamos todos em cadeiras de rodas a beber suminho e sopa moída até ao fim da vida" 15 minutos a rir
"O que me safava eram os amigos em comum, que não eram da escola) quando eu já morava no Lumiar e ia arrancando a cabeça à minha prima mongolóide. Felizmente, quando nos rimos todos, ela pensou que nos estávamos a rir de ela ser mongolóide e riu-se também."
+ 15 neste excerto...
parabens!
"Desde o dia em que fomos à quinta que soube que o Hugo era diferente. O Hugo deixava-se perder porque era pobre e achava que era para isso que eles serviam. "
loooool
"No futebol, gostava era de centrar, porque tinha o pé chato."
looool
Este post faz-me lembrar os filmes da Marisol e do Joselito que alguém me obrigou a ver quando era pequenina.
Moldaram o meu fatalismo para sempre. Ainda hoje, quarenta anos depois, luto contra esse "pobrezismo".
Que bom encontrar-te de novo! Já não sou pobre e faço o bigode.
ahaahahahhahaahhaahahhaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
O Kayser Soze usava como subterfúgio uma alegada trombose para ter aquele andar...
Ou então pé chato...
E mencionas o Sô Zé...
Estás a ficar sem ideias para escrever?
Vieste-me buscar, Ismael ?
Eu sou o Hugo ;)
muito bom.. quase ao nivel do {BAK}rambo..
espertinho.
crris de tabernaque,you ar a good boy crris
Juve,
Estas a atingir aquele grau de demência, o que é bom.
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