O melhor do Natal era montar a árvore em casa da minha avó. Um pinheiro de verdade. Até ao tecto. Às vezes encurvava a ponta de tão grande que era. E vinha a empregada da minha avó com uma tesoura de cortar o frango, em dois, em quatro, e depois em oito, e um banco de cozinha, inteiro, daqueles de madeira pintados de branco para dar com o tampo da mesa da cozinha em mármore para cortar aquela ponta. A habilidade com que subia àquele banco era extraordinária. Quantas vezes não pensei que ia cair e bater com a cabeça na quina da mesa e abrir-se como uma tampa de uma caixa de jóias de onde saía um pedaço de cérebro em vez duma bailarina que dançaria sobre a mesa ao som da novela do canal 1. Escrito no comando. Para não enganar. Foi uma confusão desde que apareceram quatro canais. Depois vinte. No fim, cem. Escorregando até à ponta onde ninguém jantava porque ficava de costas para a televisão. E onde a cadeira chiava. A da minha avó tinha um penso por baixo. Para ela saber que era a dela e a única que não chiava. Ai de nós que nos baloiçássemos nela. O vaso de cimento pintado de branco e vermelho, baços, era enchido de areia. Enquanto segurávamos a árvore para a manter de pé. Como aquelas pessoas que desmaiam para a camâra de televisão quando estão à espera do corpo do filho pescador que desapareceu na traineira e que depois deu à costa sem antes bater várias vezes com a cara num rochedo e esta parecer pasta de atum sem a parte da embalagem com a coisinha de puxar que servem em quase todos os restaurantes que não prestam. Guardada de um ano para o outro. Num saco cinzento como as traseiras e a vida dessas traseiras do prédio da minha avó. Metido numa arrecadação no cimo do prédio. Um terraço. Que dava para a rua. Onde se podia cuspir para os chapéus das senhoras que iam ao Monumental. O antigo. Em madeira, a arrecadação. Com uma porta que abria com uma chave comprida e enferrujada que só a minha avó sabia onde estava. Fechava-se no quarto quando era para ir buscar a chave e nós esperávamos no corredor. Escutando. Mas nunca percebemos onde estava a chave. Apostámos em gavetas. Colada por trás do móvel. Na mala azul debaixo da cama. A árvore era metida entre o móvel dos cristais que não eram usados (para não estragar) e o outro móvel que tinha copos de vinho que quando se deitava lá para dentro ia até ao fundo do pé. O pinheiro comprado na Morais Soares ou em Sapadores. Nunca sei. Que vendia árvores quando era Natal e que não cabiam dentro da loja por isso estavam na rua. Atadas com uma corda para ninguém roubar. Ao molho, como o alecrim. Mas ninguém chorava. Não imagino como. No bolso ficaria de fora e correr com uma coisa daquele tamanho, de arrasto, não dava grande vantagem. E até nem é desporto olímpico. A minha avó perguntava sempre se não dava para fazer um jeitinho. Que me lembre, de todas as vezes que perguntou se não dava para fazer um jeitinho, disseram-lhe que não. Mas nunca desistia e, ano após ano, tentava-o em vão. Fazia o mesmo com os brinquedos. Mas isso era na Baixa. Em lojas escuras onde nenhum brinquedo parecia o máximo. E eram todos o mínimo. Brinquedos que nunca vi em anúncios de televisão com crianças que pareciam divertidas a brincar com ele. Eram os brinquedos de há dez anos. Ninguém pegou. Não os vendeu e ali estavam. À espera da minha avó. Mesmo com luzes. Enormes. Metalizados. Em caixas de papelão fino com esferovite. Nunca eram bons brinquedos. Mas eram sempre grandes. Os maiores. Porque acho que ela gostava mesmo de nós. Como não o mostrava, comprava sempre os maiores brinquedos. Era a maneira dela. Tinha sempre um fio a mais. Uma porta que não abria. Um olho vazado. Mas eram os maiores. Era sempre a última a meter os presentes em frente da árvore. E os outros pareciam minúsculos ao pé. Era ela a dizer “eu gosto mais de ti do que todas as outras pessoas”. Em minha casa era de arame. A árvore. Branca como se tivesse nevado. E pequena como uma criança que não tomou as hormonas de crescimento porque os pais achavam que isso ia fazer com que tivesse barba aos 6 anos e então alimentavam-na com muita sopa de couve lombarda e massagens nas pernas antes de deitar. Os enfeites parcos. Uma estrela em cima. Duas fitas douradas. Duas azuladas e algumas bolas e estrelas. Em casa da minha avó eram caixas e caixas. Caixas de chapéus altas e lustrosas fechadas com um cordel de bolo-rei. Agrupadas por ordem. Bolas com bolas. Estrelas com estrelas. Fitas, algumas já esfodilhaçadas, com fitas, ainda não muito esfodilhaçadas, com fitas, quase nada esfodilhaçadas. As luzes nunca funcionavam muito bem porque a minha avó não era de gastar dinheiro. Enquanto se abriam as outras caixas, eu mudava as lâmpadas de fio em fio a ver se metia uma fila delas a funcionar. Às vezes conseguia e a minha avó dizia que parecia o meu avô (eu, não ela) por causa da persistência. Ele também não parava até conseguir. Era tudo feito por ordem. Primeiro punha-se as luzes que era para os fios não se ficarem a ver. Uma de cada vez. De baixo para cima. A rodar ao contrário dos ponteiros do relógio. Das que funcionavam. As outras eram cuidadosamente guardadas nas mesmas caixas porque podia ser que servissem para o ano. Ou então para fazer rissóis de camarão. Porque nunca se sabe o dia de amanhã. Depois havia o presépio. E o rei-mago preto. Que punhamos sempre deitado ao fundo do curral. Onde, dizíamos, era o sítio em que o burro cagava. Em esguicho. Contra a parede. Para vedar e impedir o vento de entrar. Se fosse real. E a minha avó, crédula, acreditava que se deixássemos cair o menino Jesus, Deus saíria do Céu, de propósito, com um tridente na mão para nos enfiar no ouvido. A bosta de burro, além de aquecer os pés, é também um bom isolante. E depois uma luz. A da ponta que vinha assim da árvore. Colada à parede com fita-cola e ficava na frente. Para fazer daquela estrelinha que tinha iluminado a cena. E também para aquilo ter alguma luz.
Os brinquedos que me deu desapareceram. De todos, sobra um camião dos bombeiros que tem um fio e um comando. Era giro mas tem um fio. E é preciso andar atrás dele. Eu queria mesmo um carro telecomandado. Para ficar no sofá a vê-lo andar em volta da mesa. Onde eu andava a pisar só os quadrados verdes do tapete que nunca viu um aspirador. Antes de morrer ofereceu-me um carro, a sério. Pediu-me que não tirasse a carta a uma sexta-feira. E que tivesse cuidado porque nunca se perdoaria se me acontecesse alguma coisa. O tapete continua na sala. O copo do Sporting que eu lhe pedi também. Debaixo de uma gaveta que moía a madeira por onde corria e caía em cima do copo que eu virava ao contrário e batia para tirar a madeira. Hábito que ainda tenho. Com qualquer copo, em qualquer sítio. Já não em casa da minha avó que está fechada. Ninguém sabe muito bem o que fazer àquelas coisas. Estão lá fechadas. E esperamos que fiquem lá. É como as coisas que fechamos dentro de nós porque não queremos que saiam e não as queremos deitar todas fora. Na esperança de serem úteis depois. Em mim as coisas morrem. O Natal não é nada. Já não há avós nem netos. Só um jantar na sala em vez de ser na cozinha. O serviço é o bom. Em ouro. Os pratos escuros. Com uma tira ainda mais escura. Em torno. A 5 de Dezembro quero que seja 26. A 27 quero que seja 6 de Janeiro. E depois falta o tempo máximo para ser Natal outra vez. E como o ano mudou eu penso sempre que é desta que as coisas vão correr bem.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
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19 comentários:
chiça.
és um romântico!
Juvenal nunca tive dúvidas que és um homem sensivel :)Em ti as coisas não morrem. Este post é a prova disso.
Compreendo-te em toda a linha. O natal para a nossa geração já não existe. Foi vendido.
Ou o Natal passa depressa, ou então tens de ficar sem internet. Merda sentimentalista. Es um anormal, Juvenal.
Foda-se pá.
Ainda bem que és como o teu avô, "Ele também não parava até conseguir", e tu desta vez conseguiste.
Parabéns e feliz Natal.
...a menina trata de ti.
Excelente texto, Juvenal. Só é pena essa caneca não ser do glorioso. Seria sublime.
Assim, é só excelente.
Não. A referência ao Sporting abrilhanta a cena natalícia.
Gostei.
Já a cena de chamarem sensível ao anormal do rapaz, fez-me logo lembrar o Cláudio Ramos. Fodasse!
Concluo dizendo que esta merda de blog continua sem qualidade nenhuma.
Vê lá se manténs a coisa assim.
Quando éramos pequenos, alguém se esforçava para fazer com que esta época fosse feliz. Esforça-te agora tu por alguém. Vais ver que voltas a encontrar algum ânimo.
Estou lixado (para não dizer outra coisa) em nunca me ter lembrado de colocar o rei mago preto lá atrás e dizer que era ali que o burro cagava... Devaginal!!!
Essa de meter o rei mago preto lá atrás é estranha ... e duvidosa!
um abraço
Belo pedaço de literatura.
Eh, querailho, bem esgalhado, juvenal!!!!
Chinês amigo do Pai tAnal.
Nem só de senaitas vive a tua excelente prosa. A pilinha do menino jesus também é inspirativa.
Merry xmas... merry kiss-my-ass!
Muito bom. Pra não variar!
estas a tornar-te um erudito.
arvores de natal da morais soares, bem!, é pesado.
Porque é que o burro cagava em esguicho ?
nao tinha comido fibra suficiente burro
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