Francisco Francisques desceu as escadas do número 4 da Rua Carlos Mardel. Que fica ali ao pé da Morais Soares mas quem vem do Saldanha e desce ao pé do Largo do Leão precisa, primeiro, de subir um bom bocado (não o bolo) da Morais Soares e virar à direita quando puder e ir dar uma volta do catano (os anos 80 ligaram, André) para chegar à Almirante Reis e dizer “foda-se, tu queres ver que me enganei?” e olhar assim perto do pára-brisas como quem se está a tentar localizar e aperceber-se do contrário, um pouco depois, quando aparece uma rua em que se pode voltar à direita e onde há um chinês que “não é comós outros” e que “fazem comida mesmo como se come na China” - este mito é comparável àquele de que as chinesas usam sapatos 32 até à idade adulta para ficarem com os pés pequeninos e não terem de importar calçado da Índia ou do calçado Sameiro ali em Barcelos - e um estacionamento daqueles que se vê logo que é inventado e fica mesmo no meio da rua mas se há arrumadores é porque se pode, até porque, os arrumadores, se Deus Nosso Senhor os pôs na Terra, é porque têm alguma função social além de espalhar a sida, como os pretos que é roubar e os ciganos que é não tomar banho e vender o Windows antes de ele ter saído - e onde se se seguir em frente vai-se dar à Morais Soares de novo mas já se pode voltar para baixo e entrar na Carlos Mardel de modo a ir ao Pingo Doce comprar o comer do bom com o ‘nheirinho para se poder ir jantar no domingo.
Francisco Francisques nunca se tinha apercebido deste problema porque nunca tinha tido carro desde que ali morava - “um descanso” - nem tentado ir do Saldanha até ao Pingo Doce da Carlos Mardel pelo Largo do Leão e pela Morais Soares. Caso contrário, já teria escrito uma carta de indignação à Câmara de Lisboa como em tantas outras ocasiões. Foi dele a carta que questionava o presidente da Câmara “porque caralho” é que agora não se podia seguir em frente ali no Terreiro do Paço quando se vem do Rossio e se tem de voltar logo à direita e ir dar a volta ao Cais do Sodré para se poder voltar à esquerda em direção a Santa Apolónia. Estava capaz de apostar que “era para o preto do António Costa ter onde estacionar”. E mesmo que assim fosse, não era preciso fechar tudo, bastava meter ali uma placa daquelas com o símbolo de parque para deficientes mas para pretos. Não obteve resposta. Talvez pela inclusão da palavra caralho. Gostava de incluir caralho em muitas coisas. Até naquela prima mais nova que era deficiente e só tinha dois dedos a sair do ombro mas que era “boa na punheta”, segundo contou depois na escola, o que valeu uma ida àqueles institutos de onde não se volta normal dando um desgosto à avó que sofria de cataratas e incontinência. “O que dava jeito para lavar a cona depois”, dizia-se a brincar. Dava dimensão. Num “acidente do caralho”, não bastava apenas haver mortos. Era preciso haver membros decepados. Uma perna na estrada. Um bebé projetado por trinta metros e atropelado por uma carrinha do Inatel cheia de velhos que depois se despistava e caía duma ponte e ninguém ia lá porque não vale a pena estar a acordar os bombeiros a esta hora por causa de velhos que nunca pagaram para a reforma e agora vivem à custa da gente que tem de trabalhar até aos 65 e não pode andar a mandriar logo aos 60. Ou, até, aos 55, se se tiver tido um cargo de administração na função pública que aí, então, toda a gente sabe que não se faz nada e ainda se reclama. Em especial os enfermeiros. Que são pagos principescamente e ainda mandam vir só porque têm de andar a limpar diarreia aos velhos que lhes escorre da fralda para o colchão. E ainda por cima não são nada boas como nos filmes que dão na televisão e que toda a gente sabe que são um retrato fiel da realidade.
Mandou parar o 742 que o levava até à Ajuda onde trabalhava a carimbar coisas e a fazer cenas. Passou o passe no coisinho que fazia *pim* e dizia “telho” olhando em volta a ver se alguém se ria e percebia esta piada tão boa que tinha sido ele a inventar e que achava que um dia o ia levar a fazer dinheiro quando alguém o descobrisse no 742. Fazer essa piada num anúncio da Carris que passasse na televisão, ou até na Rodoviária num outdoor ali em Famões ou Santo António dos Cavaleiros. “Use os transportes públicos *pim*te um quadro, escreva um livro, plante uma árvore, ande de autocarro” e no fim um sorriso e aquele gesto de fixe com o polegar esticado. Pensou até meter o Tello, que era lateral do Sporting e que só se esforçou na última época que lá esteve para conseguir ir para um clube daqueles do leste que pagam muito devido ao mercado do ferro forjado e das armas, a carregar no coisinho que faz *pim* e depois apareceria ele próprio e diria “*pim*, Tello?” e toda a gente se ria e depois passava um slogan com chamas cor de laranja e azuis e amarelas a dizer “Nada é tão divertido, como andar nos transportes públicos”. Mas nunca lá ia ninguém importante. Nem um administrador da Carris, um pica, um condutor daqueles que vai só de boleia porque está em fim de serviço ou vai pegar um pouco mais tarde e então aproveita a boleia e vai na conversa com o condutor regular. Nem nunca se riram e Francisco guardou a sua frustração e a carteira com cuidado dentro do bolso de trás porque tinha lido que a carteira no bolso da frente podia fazer cancro nos tomates de andar sempre assim a bater. Sentiu a fotocópia que guardava entre o bilhete de identidade e o passe. Uma fotocópia de uma fotografia da Lurdes dos Recursos Humanos na praia de Armação de Pêra com um dos bifes de fora porque tinha levado com uma onda por trás quando se estava a tirar a fotografia de grupo e não reparou e andou assim toda a manhã quando a firma ainda pagava uma semana de praia a toda a gente. “Eles agora só pensam neles”, dizia com amargura. Gostava de praia. Não tanto das praias do Algarve. Mas se era de borla, o melhor era aproveitar. É como o prolongamento dos jogos da Taça. E o Algarve, naquela altura do ano, já só tinha a terceira idade. E as peles penduradas de quem já tinha perdido toda a elasticidade. Colagénio já só era uma palavra complicada que viam na “gógla”. Já não havia para onde olhar. A não ser a Lurdes e o bife de fora. Estava demasiado de fora. E o Cunha disse que aquilo era a tripa. Que quando se fazia demasiada força, a tripa cedia e vinha para fora. O Cunha sabia da vida e tinha tido uma sobrinha de um irmão que tinha casado com uma preta que tinha ficado com a tripa de fora por tentar levantar a mochila da escola e depois tiveram de a levar ao médico mas nunca mais se recompôs e ficou mongolóide mas só de um lado da cara. Definiu-se então que a Lurdes devia andar a fazer demasiada força no trabalho e toda a gente a passou a ajudar a carregar papéis e dossiês e coisas pesadas como a mesa onde a Lurdes trabalhava quando o estore se avariou e o sol passou a bater lá de tarde e arrepanhava-lhe uma vista.
Chegava sempre um pouco antes das 8:30 para alinhar os lápis, canetas e carimbos que usava no seu trabalho. “Porquê tantos lápis?”, perguntavam-lhe. Porque assim, sempre que quisesse um lápis afiado bastava fechar os olhos e escolher um qualquer e a probabilidade de estar afiado era maior e então não tinha de se levantar para afiar. E então quando todos os lápis deixarem de estar afiados, como fazia? Levantava-se e afiava todos de uma vez e então o tempo que perdia era apenas de uma viagem. Isto valeu-lhe um aumento porque o chefe não era muito esperto e dizia-se que tinha conseguido um lugar sem ter ido a concurso porque conhecia pessoas. Mas isso nunca ninguém provou.
Ligou o computador e foi à “gógla” onde escreveu “gógla” para ir à “gógla” e depois à internet em geral. Abria sempre dois Internet Explorers porque era dos que fazia duplo clique na barra de iniciação rápida e depois dizia que era “víru”. O singular de vírus. Abriu o “émel”. Tinha 4 “émels” novos. Duas apresentações de power point com música midi e citações do Buda pejadas de erros ortográficos e que se não fossem enviadas caíam-lhe os tomates duma varanda para dentro dum camião daqueles que tritura o lixo e onde um gajo fica sempre preso atrás quando está com pressa para ir a qualquer lado e sai de casa mesmo em cima da hora e o outro tinha a ver com felicidade e paneleirices do género. Um era sobre o crescimento do pénis - Francisco perguntava-se sempre quem é que se tinha chibado e como é que se sabia em Vanuatu que o pénis de Francisco Francisques parecia um dedo mindinho de criança - e o outro de trabalho. Que fingiu não ver para ainda ir à máquina buscar café e conversar que era o que gostava mais de fazer. Contava sempre o tempo a ver se apanhava alguma gaja e fazia aquilo de deixar cair a colher de plástico e depois quando as gajas se baixavam ele dizia “já que estás aí em baixo...” e ria-se alarvemente até ao dia em que se peidou e nunca mais foi ao café.
Nesse dia saiu tarde. Sentia-se esquisito.
Mandou parar o 742 e sentou-se no lugar de trás de tudo. Que era onde se sentavam os maus nas viagens da escola. Francisco Francisques era um dos maus. Lembrou-se desses tempos. Da escola do Olival Basto. Dos professores. Dos colegas. E adormeceu.
Acordou em Santa Apolónia. Sentia-se diferente. Como se algo tivesse acontecido. Como quando o Bruce Banner levou com uma explosão de raios gama mas que em vez de o assar ou provocar leucemia, o transformou num jogador do Porto com propensão para ser excluído de campeonatos ou até o Peter Parker que em vez de uma simples borbulha ou ficar paralisado da cintura para baixo, se transformou no Homem-Aranha.
Franfisco Francisques era agora o Homem-Carreira. O homem que sabia de cor todas as carreiras da Carris incluíndo trajetos , horários, melhores percursos, melhor conjugação de trajetos com Metro, Rodoviária e Transtejo, transbordos, meios-bilhetes para Loures, Barraqueiro, barcos para o Barreiro e Cacilhas, metro do Porto, também conhecido como o 15 que vai para Algés e passa ali ao pé do CCB que toda a gente achava que não devia ser construído, exceto o meu professor de história que se chamava Apolinário e que dizia que, aquando da construção do Louvre, as pessoas também achavam que aquilo não ia servir para nada e hoje é o que se vê. Também dizia umas coisas sobre a Grécia mas ninguém lhe ligava muito. Que aquilo parecia que Deus tinha querido fazer um país e depois andou lá com um prego a partir aquilo tudo.
Chegou a casa e foi a fóruns procurar se havia mais alguém como ele. Apontaram-lhe o site da Carris. O site da Carris já fazia isso. E Francisco Francisques ficou maluco e anda agora pelas paragens de Lisboa a dizer às pessoas quais os melhores percursos. Mas como ninguém lhe ligava, começou a dizer que ele era o site da Carris. E as pessoas diziam que quando iam ao site da Carris, ele não estava lá. E ele depois dizia a piada do *pim* telho até que o internaram numa daquelas instituições onde os enfermeiros tratam os doentes como gado e depois vão para o Rossio dizer que querem aumentos e Rolls Royces e mais não sei o quê.
sábado, 18 de junho de 2011
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11 comentários:
Fogo, que final fraco.
Excelente regresso do Mestre da Tergiversação.
Muito bom, já tinha saudades!!! :D
Dasss! E tudo isso só porque foi ao Pingo Doce? Antes uma omelete...
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Atenciosamente,
Tatiana A Dias
Gostei do texto! :D Que boa maneira de conhecer Lisboa (: Quando for aí, é obrigatório ir visitar o Francisco Franciques à instituição para que me indique os melhores trajectos! Será que deixam?
ó filho os ciganos é não tomar banho?
eu tomo banho todas as semanas pra poupar água
os ciganos são ecológicos
os gadjos são só cu
er blevet gemt og vil
Descobri-te hoje e já não sei como viver sem ti! Obrigada, melhor blog do universo! :)
"muita" bom. :)
Escapou-te um Franfisco...
:)
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