terça-feira, 29 de julho de 2008

la haine

Hei-de odiar tanto a mulher com quem casar que lhe baterei na cara com tanta força de forma a lhe alterar as feições. As pessoas dirão: “está diferente, a tua mulher”. Pensarão que é do cabelo. Que aparou o bigode. Que ajeitou as patilhas em bico (como a Ana Luísa que andou com o Manuel Periquito que suava em bica e cheirava a tremoços e foi a primeira pessoa em Portugal a usar t-shirts dos Bauhaus). Que emagreceu. Que comprou roupa nova. Que teve um esgotamento no passado e só eu a aceitei como é. Ela dirá “a mãe (as pessoas da província cortam sempre no artigo porque pensam que a mãe delas é a única e é mãe de toda a gente) bem me avisou”. E avisou. Cuidado que ele é doente. Aquele sorriso não é de felicidade (mas engana bem). É de quem te vai foder o resto da vida e não será no cu, como tu gostas. Mas eu só estarei bem com quem odiar. Para poder ser odiado de volta. E sentir esse ódio como música para os meus ouvidos. Odiar com força e mérito. E ir no carro e dizer “nem para ver no mapa onde fica o parque de campismo da Quinta dos Carriços serves, ó vaca”. Ou bater-lhe na cara de lado quando estiver a ver, no espelhinho do lado do passageiro, se se nota os olhos vermelhos de ter chorado a noite toda de infelicidade, quando estivermos a ir a Mafra almoçar ao domingo no nosso carro comercial com os meus sogros, presos de lado com aqueles elásticos de gancho que antes se usava para prender as malas quando se ia ao Brasil ser operado à cara ou ao coração, num daqueles restaurantes que “eles agora na Visão dizem tão bem”. Aquele tipo, o gordo que era director do Se7e e depois passou a crítico gastronómico só porque é gordo e bêbado. O leitão é daqui. O leite creme queimado na altura. A frigideira não é lavada desde a queda do muro de Berlim. E o pão é “tipo o de Mafra”. O que não deixará de ser curioso, estando nós em Mafra.
Mas hei-de ser genuíno. Isto de se odiar é uma arte. Um gajo não nasce a saber fazê-lo. Aprende-se. Primeiro quando se perde ao Risco e se culpa os dados e se diz “isto não tem estratégia nenhuma” e acabamos a morder o tabuleiro que ainda hoje tem marcas dos ataques de fúria (mau génio, como dizia a empregada da minha avó). Mais tarde na escola quando se tem 97% a matemática mas vem sempre a vaca da Madalena (eu gostei de ti, sabes?) e tem 100% e ainda por cima é gira e tem namorado e não sou eu. E é a única que faz festas de anos em discotecas (boîtes, em 1987) e sabe dançar levantando o joelho à altura do cotovelo e inclinando o pescoço para a esquerda num movimento gracioso que nos fazia corar. Apura-se na faculdade (o ódio, não a Madalena). Quando todos os outros tomam decisões certas e eu escolho as cadeiras que de nada servem (História dos Balões de Ar Quente) a não ser para ficar bem no currículo e implicam saber resolver equações de quarto grau com aproximações de segunda ordem (wtf?) e depois tentar explicar isso nas entrevistas de emprego e acabar num notário a tirar fotocópias e a odiar ainda mais a notária por ser boa e bem sucedida e nunca me dizer mais nada do que “três cópias, frente e verso”. E ficar assim a vê-la ao longe e a pensar “porque é que não olhas para mim?”. Tento ser espirituoso ao almoço “a sotôra já viu que a sopa é sempre de legumes?” ou “ponha alguns champignons com os meus cogumelos”. Mas acabo sempre por me engasgar com o Sumol de ananás e ficar com um bocado de alface preso no canino do lado direito. Onde me falta o pré-molar seguinte. Também é da roupa. Não tenho dinheiro para roupa de marca. O mais marca que consigo são as t-shirts a 9.90 na H&M. Porque conheço a empregada. Que até me quis mas eu tenho qualquer coisa que me repugna em dentes tortos e quistos na garganta. E a voz queimada dos shots de tequila e dos Gitanes sem filtro que lhe fazem tresandar o hálito e escurecem os dentes.
Odiar, para quem não faz carreira disso, até pode parecer uma coisa que é simples e um gajo vai e é só atar e meter ao fumeiro. Mas não. É preciso anos de treino. Anos a desistir de coisas só porque dá demasiado trabalho e depois no fim nada disso interessa. Porque todos esses momentos desaparecerão no tempo como lágrimas na chuva. Todos havemos de ter cancro ou uma doença qualquer no coração que rebentará como uma bomba de Carnaval quando pegamos pela primeira vez no nosso sobrinho ao colo depois de este ter tido desinteria pela primeira vez e ter escapado por um triz ou nas veias mais compridas que deixaram de funcionar e incharam como rins de porco com tinha. Além de odiar, também sou bom a fazer concursos de escarretas daquelas que um gajo deixa escorrer e depois puxa de volta. Como o Camola (que agora é um senhor advogado com FDP grande) que comia um Mars e esticava uma escarra até ao chão do 17B (que ia do Campo Pequeno às Galinheiras). Tentei reintroduzir isto na noite de Lisboa. Da varanda do Incógnito. Novamente, foi um falhanço total. O melhor que consegui foi acertar com uma escarreta entre duas camisas Gant de dois betos que agitavam a mão no ar quando dava para aí Franz Ferdinand ou The Killers ou uma banhada qualquer dessas que faz os betos do chinelo de meter o dedo e dos calções com bolsos de lado agitar as mãos no ar. Como aquele homem do saco que dizia adeus ao pé do Saldanha e é quase mais sozinho que eu.
Eu sou daqueles que quando um tipo da minha equipa marca um golo de calcanhar ou manda um biqueiro de fora da área (mesmo que seja ao poste), eu nunca aplaudo. Digo: “foda-se, ó imbecil, e que tal passares?”. Farei isso também com a minha mulher. Fá-la-ei infeliz e miserável BAR (beyond all recognition). E odiar-me-á tanto como eu a ela. Será perfeito. Nunca verão ódio tão genuíno. Passaremos férias em apartamentos minúsculos alugados (“sim, porque eu não gasto dinheiro com aquela puta”, direi eu ao Gonçalves da contabilidade, que ainda será mais infeliz que eu e contará vezes sem conta a história do Euromilhões que não entregou na semana em que saíram os números que joga com o cunhado (o dia de anos das mulheres, a idade dos filhos, o ano do nascimento do avô e os dentes verdadeiros da avó , nas estrelas), tudo porque era a vez dele pagar mas andou a fazer-se de esquecido por causa de um prego e dumas imperiais que não sei quê mas deixei a carteira em casa “e agora para te foderes fico à espera”) onde acabaremos a desfazer a loiça um no outro e a vizinha a dizer “é todos os anos a mesma coisa”. “Porque não arranja outra, menino André? Ainda é jeitoso”. E eu direi, com o lábio de baixo a tremer mas o de cima rijo de dignidade como rabo de uma adolescente (o máximo de dignidade que alguém pode ter depois te ter levado com um prato de sopa de agrião na cara gasta pelo sol e pelo whisky barato das promoções do Minipreço): “ó Dona Lurdes, o que interessa é haver saúde. Saúde e não bater de cara, com força”. Depois farei aquele sorriso enigmático que ela poderia descrever em tribunal como “via-se mesmo que se preparava para a regar a ela mais ao pequeno Josué com ácido e depois pegar-lhes fogo e deixá-los a arder à beira da estrada enquanto ouvia aquela música do demónio”. Referir-se-ia, provavelmente, ao “Breaking the law” dos Judas Priest numa cassete que comprei em Valladolid quando era do metal e viajava muito para ver os grandes festivais de metal da Europa. O Wacken e o Barroselas Metal Fest. Mas conhecia-me desde pequeno e sabia “pela alma da minha avó, esteja lá onde ela estiver” (ao que eu respondia “no Alto de São João a apodrecer numa gaveta qualquer”) que eu não seria capaz de tal coisa. Afinal, ela e a minha avó tinham partilhado desenhos de croché para fazer naperons de meter televisões em cima onde ainda ganhava o Benfica.
Juntos odiaremos o pequeno Josué. Fruto duma ida ao cu que escorreu. Juntos teremos bebido álcool e consumido coca para provocar um aborto. Juntos teremos rezado para que a incubadora se desligue durante a noite. Que tenha oxigénio a mais e cegue, como o Stevie Wonder. Que se engasgue com os ossos da feijoada de boi. Que se cague e transborde da fralda até se afogar na cama. Ou até que alguém o roube. Mas será tão feio que ninguém o fará (“sai a ti e à vaca da tua mãe”, direi eu). Mandá-lo-emos para a escola pública. Com um Bolicao e um Caprisone na mochila da Rexona que ofereciam na farmácia em compras superiores a vinte euros onde compraremos pomada para o pé-de-atleta e bisnagas com aplicador para as hemorróidas. Será a pior escola. Há-de comer aquela sopa feita de restos em malgas de alumínio que lhe atacarão os intestinos e farão úlceras do tamanho de fotografias tipo passe. “Isso é porque não mastigas, meu boi”, dirá ela. E eu concordarei em silêncio sem saber muito bem quem odiar mais. Deixarei que o meu cunhado o enrabe, quando vai lá ao sábado almoçar, na casa de banho do andar de cima da nossa vivenda de Vila Franca de Xira, onde estarei fechado no escritório a fingir que leio uns papéis que tenho de ter assinados para segunda-feira, com música alto para não ouvir os seus gritos de quem ainda tem o esfíncter apertado e não foi dada a oportunidade de escolher lubrificante. Vestido com o vestido cor-de-rosa das flores (todos pensávamos que era uma menina por causa do micro-pénis. “Sai ao pai”, dirá ela) que a mãe comprou ainda uns meses antes de nascer (ele, não ela. Até porque seria impossível ela comprar qualquer coisa antes de nascer. Até mesmo agora que inventaram a internet). Fingiremos sempre que nada se passou. Que o tio Carlos é um bom tio. E isso com pomada amanhã passa.
Por comum acordo mantê-lo-íamos a pão e água (e talvez laranjas, por causa do escorbuto) até aí aos dezoito, quando terá ordem de soltura. E o atiremos ao trabalho. Sem curso superior “que sais demasiado caro, meu imbecil”. Onde será um falhado ainda maior que nós. Mas não terá hipótese. Morrerá de qualquer doença rara que virá naqueles mails mandados a toda a gente. Só aí perceberemos que gostávamos mesmo dele. Que era a nossa única descendência. Que era os nossos genes. Faremos tudo para o salvar mas morrerá na véspera de Natal. Depois de se cagar à mesa e eu o correr ao pontapé para o quarto e trancar a mãe na cozinha depois de me enfardar em whisky e vinho do Porto do meu sogro.
A ela tê-la-ei conhecido no Tokyo ou no Jamaica. Eu serei a sua última hipótese. Estará a secar por dentro. E eu já estarei tão farto de ser pontapeado que aceito que meta a escova de dentes no meu copo. “Desde que não encostes as partes de cima e tenhas a tua própria pasta de dentes”. Até porque me deixa ir-lhe directamente do cu para a boca. Onde me virei com os pintelhos encostados ao nariz que se enrolarão nos pêlos que nunca cortou. No fim, corro-a ao pontapé da cama e deixo-a ir fumar os Golden American Lights que compra com o salário da Pull & Bear do Colombo. “Mas de janela aberta que não quero cá o cheiro dessa merda em casa”.

29 comentários:

Anónimo disse...

sabes mais que isso.

Azathoth disse...

"Porque todos esses momentos desaparecerão no tempo como lágrimas na chuva"

ena andaste a ver o Bladerunner....

Anónimo disse...

"All those moments will be lost in time, like tears in rain..."

Quote mais poderosa de sempre!

Padawan disse...

"Mas eu só estarei bem com quem me odiar. Para poder ser odiado de volta."

Convinha mudares isso, pelo menos para o livro.

tiagugrilu disse...

Odeio-te.

Que as tuas férias sejam um valente cagalhão.

Anónimo disse...

Sabes que tens uma legião de fãs incógnita, não sabes?

flôr de sal disse...

tens tanto medo de ter uma vidazinha "classe média", que descambas nisto...

juvenal, o anormal disse...

relaxem.

Anónimo disse...

Juvenal,

Vejo com enorme assiduidade o teu blog quase desde que existe e sou um grande fã dos teus textos, apesar de quase nunca os comentar.

À falta de gosto já estou habituado (digo-o no sentido positivo, claro!), mas este estilo de escrita é a primeira vez que o vejo aqui. E não gostei.

Anónimo disse...

...ombro?

mj

Anónimo disse...

Juve,

Misturar Bukowski com Boris Vian (Vernon Sullivan) com Bruno Nogueira dá merda.

Continua, mas tira Bruno Nogueira.

Ps. O Minipreço nunca fez promoções de whisky.

O Man

Anónimo disse...

Já agora (e porque O Man a paternalista comó caralho):

O ódio não é um sentimento primário. Por isso é dificil escrever sobre esse tema. Explora primeiro o medo (a frustração tens explorado sobejamente). Os dois juntos dão no desejado ódio.

Ps. estou a fazer sopa de cebola.

O Man (também me podem tratar por Mestre)

Anónimo disse...

E já que estou com a mão na massa:

"... like tears in the rain." é uma imagem muito usada na literatura. Já não é uma citação ("quote"??? será possível), já é do domínio público, tipo: "vai levar no cu".

O Man

Anónimo disse...

Pura poesia XD

Anónimo disse...

és uma merda!

Anónimo disse...

10 comentários... não sei como há gente que lê estes textos tão longos.

Amor para todos :)

Anónimo disse...

Ainda vives em casa dos teus pais, noé?

Já vi muito melhor.



pachita

Catarina Matos disse...

Pronto. Lá vão as pitas a correr comprar capacetes, cotoveleiras e joelheiras da Barbie para se candidatarem ao lugar.

Judas disse...

gostei xaval..

Anónimo disse...

Porque é que me parece que deves gostar mais das críticas negativas do que da habitual babadíce?

;)

L

grassa disse...

Tás "lá".

Anónimo disse...

Juve,
Foda-se é só isto? Voltamos à primária, é?
Olha que caralho hã!?

Anónimo disse...

Juvenal, meu velho poeta decadente.

Puseste o dedo na ferida... repara como até os teus fãs agora ladram contra ti.

És grande. Uns dirão que este texto foi de muito mau gosto... outros que puseste um espelho à frente de muita gente.

Fábio Ribeiro disse...

Ando há anos a ler este blog e a ler comments do género: "melhor post de sempre" num trocadilho qualquer abaixo do nível que já mostraste que tens.

Com toda a experiência de leitura deste blog e com todo o ódio que há em mim tenho que te dar os parabéns.

Este é, oficialmente, o melhor post da história da blogosfera (eleito por um membro da imprensa portuguesa).

juvenal, o anormal disse...

fizeste-me o dia.:)

Anónimo disse...

ao trolha ali de cima:
o ódio é a primeira das emoções. antecede no tempo - e em muito - o amor.

Anónimo disse...

CARALHO!

um gajo vem procurar este blog através de palavras chave num post de há 3 anos atrás, encontra-o e lê esta obra prima escrita ontem. Deves meter anfetaminas pelo cu para conseguires escrever esta merda com qualidade durante tanto tempo.

Anónimo disse...

Uma vez conheci uma gaja da Pull do Colombo. Ia lá. Mas ela não quis. End of story.

Contabilista Emocional disse...

Corajoso é falar sobre o ódio sem ser num contexto humorístico. Corre-se o risco de se ser odiado, mas não é esse o objectivo? Mas também se corre o risco (se é que ele existe) de se ser admirado.